27 de nov. de 2011

Em plena Radial Leste

UGO GIORGETTI

Domingo de manhã, muito cedo. Em plena Radial Leste surgiu na minha frente uma camionete, dessas com uma pequena caçamba, dentro da qual vi uma moça sentada sobre o que parecia uma pequena caixa. Ao seu lado um rapaz, que saiu do meu campo de visão para sempre, já que não pude mais tirar os olhos da moça, linda, linda, linda. (Minha insistência nessa única palavra substitui inúteis descrições minuciosas que já li em tanta literatura de segunda.)
Percebi com vaga inquietação que ela também me olhava fixamente. E então fez um gesto. O gesto, para o qual fazia uso das duas mãos delicadamente erguidas na altura do rosto, simulava alguém enrolando uma carretilha, alguém girando uma pequena manivela. Sou um homem de cinema e imediatamente reconheci o gesto. Indicava um filme rodando, uma câmera em funcionamento. Logo depois me dirigiu outro gesto. Com o indicador da mão direita fez um sinal negativo, de não. Algo que eu não devia fazer. E, rapidamente, com o mesmo dedo indicador mostrou algo à minha esquerda. Claro como água: não deveria olhar para a esquerda, vale dizer, não deveria olhar para a câmera, primeira recomendação que extras e figurantes recebem num set de filmagem. Concluí que uma filmagem transcorria num carro à minha esquerda. A câmera devia estar enquadrando o motorista desse carro e talvez alguém ao seu lado. De qualquer maneira, meu carro, e eu próprio, deveríamos estar no campo de visão da câmera através da janela do passageiro, de modo que qualquer ação inadequada que eu fizesse poderia prejudicar a filmagem.
Obedeci às instruções, paralisado pela moça. Pensei impressioná-la com um gesto que a surpreendesse pela elegância e naturalidade, revelando-lhe talvez muito do que eu sabia do ofício em que ela estava evidentemente se iniciando. Não fiz nada. A linda criatura da camionete, então, sorriu. Seu sorriso me trespassou. Parecia me agradecer a compreensão e boa vontade. Pensei em retribuir o sorriso, mas nem isso fiz. Naquela hora da manhã, o sol ainda baixo, seu rosto entrava e saía da luz, conforme a camionete passava pelos intervalos entre um prédio e outro. Sua imagem oscilando entre luz e sombra parecia me oferecer, e ao mesmo tempo me negar, tanta beleza e juventude.
Ela fez mais um sinal com as duas mãos abertas, pedindo calma. A camionete diminuiu a marcha diante de um sinal fechado. Ela mantinha o mesmo gesto me advertindo que a filmagem continuava. Devia ser uma cena longa, talvez um diálogo. Quem estaria ao meu lado, no outro carro? Talvez um ator, um velho amigo, por que não? Com o rabo dos olhos pensei ver a parte anterior de um carro que me pareceu vermelho. Continuei minha atuação convincente, como a que tantas vezes pedira a meus figurantes.
O sinal abriu, a camionete começou a acelerar. A garota, então, desfez o gesto e sorrindo me lançou um beijo. Depois outro, longo, com o mesmo sorriso. E de repente me ocorreu que poderia ter me enganado. Que era apenas uma mulher que fazia sinais para um homem. De repente pensei que tinha perdido uma oportunidade, última, talvez, que uma linda mulher me oferecia. Pode ser que os sinais que tinha recebido não quisessem significar filmagem alguma e que minha interpretação se devesse apenas a uma deformação profissional, ou uma certa descrença em minhas possibilidades que vem crescendo ultimamente. Talvez eu tivesse entendido tudo errado.
Mas, antes que pudesse fazer qualquer gesto em sua direção, antes que pudesse, desesperado, tentar reparar meu possível erro, a camionete fez uma brusca curva na direção de uma rua à direita e ainda consegui ver a jovem me acenando, agora em pé na caçamba, aliviada pela conclusão de sua tarefa, ou como se -quem sabe?- também quisesse me dizer alguma coisa importante. Camionete e moça sumiram entre prédios e trânsito. Eu continuei pela Radial Leste, não sem antes, livre da proibição, olhar à minha esquerda: não havia nada.

19 de nov. de 2011

Sonhos da MEL

MEL é cabelereira.
MEL trabalha em um Salão de Beleza popular no centro de São Paulo.
MEL é descendente de índios, nasceu em Roraima e cresceu no Amazonas.
MEL usa aplique de cabelo loiro alisado e muitos que passam pelo vidro do salão dão uma olhada, ou grandes olhadas e se vão.
MEL vai participar de um concurso nacional de beleza em dezembro.
MEL quer representar seus amados estados "natais" e se tornar conhecida, afinal o Pânico na TV e principalmente a BAND, que costuma transmitir o início e o fim do concurso, estarão lá!
MEL imagina estar presente no Miss Mundo! Já pensou?!
A amiga da MEL disse que quer ir no lugar chique, mas pediu para MEL tomar cuidado, pois ela pode pagar maior mico se ficar em último lugar. MEL e todos em volta riem!
MEL diz que não vai responder a perguntas pessoais quando for entrevistada. Ela só vai falar do Salão onde trabalha.
MEL quer aproveitar a fama para trazer muitos clientes e quem sabe cobrar R$50,00 o corte e não apenas R$10,00?!?!
MEL quer vencer na vida como todos nós trabalhadores.
MEL é transexual.


Meu texto é uma homenagem a essa trabalhadora que ouvi falando no salão de cabeleireiro onde cortei meu cabelo agora a tarde por R$10,00! 


Mão de vaca, sim, eu sou!

Grandes guerras e as guerras diárias me PARALIZAM!

Me sinto como que saindo de uma guerra. Ou melhor, saio de uma batalha e continuo na guerra cotidiana da vida. Balas passam por minha cabeça e por meu coração. Balas saem do gatilho em minhas mãos, da minha boca e também da minha mente, se é que algumas não são atiradas veementemente do coração!

Mas não voltei aqui para escrever poesia.... mas quem disse que poesia é inútil (questão para um post único 1).

Vou falar sobre música. Sobre música e letra, na verdade.

Depois de uma amiga compartilhar uma canção antiga de uma banda cristã americana, não sei por que, me lembrei de uma outra canção de outra banda mais ou menos cristã. A primeira banda é o Third Day, a segunda é o Sixpence None the Richer.

O Sixpence é mais conhecido por aquela canção pegajosa chamada Kiss Me que acabou sendo colocada em uma porção de filmes e virou hit no rádio e também na MTV. Primeiro, tenho que admitir que em uma época cheia de romance no coração (um tiro chegou lá e o despedaçou várias vezes já), fui em uma loja e.... comprei o CD! Ouvi-lo foi surpreendente! Havia muito mais que Kiss Me lá! E claro, para começar, o que me chamou a atenção como de costume foram as guitarras do Matt Slocum!

Óbvio que comecei a acompanhar a carreira do grupo e acabei me esquecendo do Sixpence. Há pouco mais de 2 anos voltei à carga e baixei mais dois CDs deles (o melhor trabalho da carreira deles é o Divine Discontent!).

Em um destes CDs havia uma canção denominada PARALYZED. Como de costume, durante muito tempo me preocupei apenas em ouvir a música porque nela há um dos melhores riffs de guitarra que conheço, mas é fundamental ouvir o que a bela voz da Leigh Nash canta. Eis que ao atentar para a letra vemos um líbelo contra a guerra. Especificamente sobre a guerra do Kozovo, mas basta pensarmos um pouco e nos lembrar quantas guerras acometem a humanidade neste momento para imaginar quanto sangue derramado há nos campos do mundo. Quantos mortos. E quantos bebês já chorando no útero de suas mães.

Não vou escrever mais nada, apenas compartilho a a letra em inglês, em português e o link para uma apresentação ao vivo da música no youtube.

I look out to the fields
Where blood is shed upon the ground 
I breathe in, breathe out 
Change the channel, mute the sound 
I take a match, a cigarette, and a walk to clear my head
My stomach reeling at the thought of all those human beings dead 


I breathe in, and breathe out 
And go to do an interview 
About a song, three minutes long 
I just need something to do. 
Especially when my dearest friend
Was sent to cover Kosovo 
His last assignment brought a bullet 
And now he's gone, he's gone 


Feels like I'm fiddling while Rome is burning down 


Should I lay my fiddle down, take a rifle from the ground?
I need the ghost to breathe a northern gale tonight 


'Cause I'm paralyzed, I'm paralyzed 


I packed his books up, left the office 
Went to tell the wife the news 
She fell in shock, the baby kicked, and shed a tear inside the womb 
I breathe in, I breathe out 
Soak the ground up with my eyes 
It's hard to say a healing word 
When your tongue is paralyzed 


Feels like I'm fiddling while Rome is burning down 


Should I lay my fiddle down, take a rifle from the ground?
I need the ghost to breathe a northern gale tonight 
'Cause I'm paralyzed, I'm paralyzed


Eu dou uma olhada nos campos

Onde sangue é derramado no chão
Eu inspiro e expiro
Mudo o canal, deixo o som mudo
Eu pego um fósforo, um cigarro e dou uma volta pra clarear a cabeça
Meu estômago está revirando de pensar em todos aqueles seres humanos mortos


Eu inspiro e expiro
E vou dar uma entrevista
Sobre uma música, duração de 3 minutos
Preciso fazer alguma coisa
Principalmente quando meu melhor amigo
Foi mandado pra cobrir a guerra do Kosovo
Em seu último trabalho levou uma bala
E agora ele se foi, se foi


Parece que estou me preocupando com besteira enquanto Roma está queimando


Devo deixar minhas besteiras de lado, tirar uma arma do chão?
Preciso do fantasma pra respirar, uma invasão do norte essa noite


Porque estou paralisada, estou paralisada


Peguei os livros dele, deixei o escritório
Fui contar as novidades pra esposa
Ela ficou em choque, o bebê chutou, e derramou uma lágrima dentro do útero


Eu inspiro, eu expiro
Sugo o chão pra cima com meus olhos
É difícil dizer uma palavra pra acalmar
Quando sua língua está paralisada
Parece que estou me preocupando com besteira enquanto Roma está queimando

Devo deixar minhas besteiras de lado, tirar uma arma do chão?
Preciso do fantasma pra respirar, uma invasão do norte essa noite


Porque estou paralisada, estou paralisada

12 de nov. de 2011

USP x Extrema Esquerda x Riquinhos x Pobres x Invasão

Talvez o melhor texto sobre os últimos fatos ocorridos na USP.
Por sinal, estou entre os pobres que estudaram na USP. Há riquinhos, há, mas não são todos não.


ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
Calibre 12 no campus da USP
Ao contrário da percepção geral, não são maconheiros exigindo que a USP seja área liberada para Cannabis
Uma profunda ferida geracional foi tocada nesta semana. Quatrocentos PMs, com armamento pesado e até helicóptero, entraram no campus da USP, em São Paulo, para enfrentar 72 alunos desarmados.
A PM cumpria uma ordem judicial de reintegração de posse da reitoria da USP, invadida dias antes por esses alunos. O protesto estudantil foi motivado pela detenção, dentro do campus, de três universitários, no dia 27/10, pela mesma PM, por portarem maconha.
Não foi por acidente que, diante da ação militar, dois contemporâneos meus, André Forastieri e Marcelo Rubens Paiva, foram rapidamente à internet condenar a operação, cada um a seu estilo -Forastieri incendiário, Paiva mais ponderado.
Somos da geração que participou de outra invasão da reitoria, em 1982. E que estudou na USP durante a retomada do movimento estudantil, que havia sido sufocado no período mais duro da ditadura militar.
Ver uma ação policial tão agressiva, dentro da Cidade Universitária, não nos faz bem.
Como também é difícil engolir a tempestade de ofensas contra a USP, disparada nesta semana: antro de riquinhos mimados, filhinhos de papai que querem fumar sua maconha sem sofrer repressão.
O fato: há um enorme ressentimento, em parte da população, contra a USP. É a melhor universidade do país, está entre as 200 melhores do mundo, tem o vestibular mais difícil do Brasil (excluindo ITA e IME, escolas militares de engenharia).
Um monte de gente tenta entrar na USP, sem sucesso. Não é preciso ser a reencarnação de Freud para entender o mecanismo de defesa: "Se eu não passei na Fuvest, é porque não sou filhinho de papai, não estudei numa ótima escola particular: os riquinhos tomaram minha vaga".
Mas será que a USP é mesmo um antro de mimadinhos? Cursei duas faculdades ao mesmo tempo na universidade. Concluí ambas. Era um ambiente de glamour zero. Mais classe média, impossível.
Riquinhos? No Instituto de Química, dos 60 da minha turma, lembro só de uma loirinha toda chique, de sobrenome francês, que nunca me disse nem oi. E do herdeiro de um grande laboratório, pegador, gente boa, meu chapa. Só.
De resto, muita gente de escolas técnicas, vários da zona leste de São Paulo, pessoal simples do interior, um evangélico fervoroso, e também muitos que, ainda na faculdade (que era de período integral) davam aulas à noite para ganhar um dinheiro.
Na faculdade de jornalismo, que cursei à noite, minha melhor amiga morava na Vila Formosa, também da zona leste paulistana, e só estudou em colégio público. Outra colega querida era de uma família simples do litoral paulista.
Segundo o site da Fuvest, 24,5% dos aprovados no ano passado fizeram o ensino médio só em escola pública (estadual, municipal ou federal). É muito menos do que os 69,8 % que estudaram só em particular. Mas, a meu ver, ainda assim muito longe de caracterizar a USP como um ninho de privilegiados.
Em renda familiar, a mesma Fuvest informa que a faixa mais comum, entre os aprovados, é de três a cinco salários mínimos (18,4%). O nível mais alto, acima de 20 salários mínimos, está em quarto lugar, com 13,7%.
Que fique claro: meu apreço por esse invasores da reitoria é nenhum.
Ao contrário da percepção geral, não são maconheiros exigindo que a USP seja declarada área liberada para Cannabis. Como mostrou reportagem de Laura Capriglione e Talita Bedinelli, domingo na Folha, são militantes de grupos de ultraesquerda, habitantes de uma franja tão extrema do espectro político que consideram "de direita" o PSOL e o PSTU.
Maconha, para eles, não é bandeira -foi só um pretexto para bagunçar. Também sei que a representatividade desses invasores é zero. E que entraram na reitoria em desrespeito a uma decisão democrática, tomada em assembleia.
Mas vai uma grande distância entre rejeitar o embotamento ideológico dos invasores e achar que a USP é um valhala de filhinhos de papai, ou aplaudir uma operação militar tão gigantesca dentro de um campus universitário.
A foto de um policial apontando o que parece ser uma calibre 12 para o rosto de um estudante desarmado é uma nódoa na história do Estado de São Paulo. E um ponto baixo no currículo de todos os políticos que estudaram na USP, foram perseguidos pela ditadura militar e hoje aplaudem a ação da PM.