22 de ago. de 2011

A história de um livro: de Marcos Rey para um sebo!

ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Presente atrasado
São Paulo, 1986

Reprodução
Capa do livro de Cheever com que Rey (quase) presenteou Aquino

MARÇAL AQUINO

ERA SEMPRE UM PRAZER imenso conversar sobre literatura com o escritor Marcos Rey (1925-1999), em especial sobre a literatura americana contemporânea, que ele conhecia a fundo. Marcos adorava os grandes: Faulkner, Hemingway, Chandler, Fitzgerald e John Dos Passos, com quem certa vez teve um encontro memorável num bar.
Mas reservava um carinho apaixonado aos menos conhecidos, nem por isso menores, caso, por exemplo, do atormentado Cornell Woolrich, o escritor de livros policiais mais adaptado pelo cinema -é dele a matriz de filmes como "Janela Indiscreta", de Hitchcock, e "A Noiva Estava de Preto", de Truffaut.
Foi Marcos Rey quem me mostrou como era injusto Horace McCoy ser admirado apenas por "Mas Não se Matam Cavalos?", pois tinha escrito outros romances tão bons ou até melhores do que o livro que lhe trouxe seus 15 minutos de fama, ao ser levado ao cinema como "A Noite dos Desesperados".
Natural, portanto, que eu recorresse a ele na tentativa de esclarecer a dúvida surgida quando foi publicada no Brasil, em 1986, a novela "Até Parece o Paraíso", de John Cheever. Afinal, aquela era ou não a primeira vez que Cheever saía por aqui? Havia controvérsias.
No posfácio da edição (Companhia das Letras), o jornalista Sérgio Augusto abordava a questão, sem elucidá-la: "Não faz muito tempo, alguém me disse que haviam traduzido entre nós o seu romance de estreia, "The Wapshot Chronicle", publicado nos EUA em 1957. Por qual editora brasileira não consegui descobrir, sequer junto a um dos maiores admiradores que Cheever conquistou nestas paragens, [...] Rubem Fonseca".
Marcos foi categórico: "'A Crônica dos Wapshot'? Esse romance saiu aqui, sim, por uma editora carioca, no final dos anos 60". O problema, explicou, é que a editora fechou logo em seguida, e o livro nem foi distribuído direito. Com sua habitual generosidade, acrescentou: "Tenho um exemplar. Passe lá em casa qualquer hora que te dou de presente". E finalizou: "De qualquer forma, não é grande coisa". Como muitos críticos, ele achava que John Cheever era melhor contista do que romancista.
É claro que, na primeira oportunidade em que estive no apartamento dele, cobrei a oferta. Marcos me olhou com pesar. Contou que emprestara o livro ao irmão, o também escritor Mario Donato, morto meses antes. Acontece que a viúva tinha vendido a biblioteca de Mario -e junto se foi o raro exemplar. Deve ter sido minha cara de incrédulo que o levou a garantir: "Acredite: o livro existe, comprei num sebo.
Lembro até que tem o nome de uma mulher na folha de rosto. O autógrafo da primeira dona".
Acho que foi ali que "A Crônica dos Wapshot" começou a assumir, para mim, névoas de lenda.
O tempo passou, outras obras de Cheever foram lançadas no Brasil, Marcos Rey se foi. Continuei com o costume de perguntar pelo romance em todos os sebos em que entrava. Nunca consegui confirmar que tivesse saído por aqui.
Até que um dia, muitos anos depois, recebi uma ligação de um velho alfarrabista do Centro, que me informou ter encontrado "aquele" livro que eu tanto procurava. Na verdade, nem me lembrava mais do assunto. "'A Crônica dos Wapshot'", o homem esclareceu. "Um exemplar em excelente estado. Parece novo", ele acrescentou, como que me preparando para o preço absurdo que iria cobrar. Em sua retórica de convencimento, o alfarrabista chegou a mencionar alguém mais interessado na obra.
Interrompi o que estava fazendo e fui até a loja. Mas só acreditei quando peguei e manuseei o livro.
Sim, ele existia. E estava mesmo em ótimo estado. Nem preciso dizer que, na folha de rosto, encontrei o nome de uma mulher. Era o exemplar que fora do grande Marcos Rey. Um presente que me dera e que, por essas tramas tão fabulosas do destino, levou anos até chegar às minhas mãos.


Roubado da Folha de São Paulo de domingo, dia 21/08/2011

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