30 de jul. de 2011

Augusto de Campos x Ferreira Gullar

Sobre a gula

Poeta responde à coluna em que Ferreira Gullar afirma tê-lo ouvido criticar Oswald de Andrade em 1954

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O poeta Ferreira Gullar continua guloso. E mais desmemoriado do que nunca.
É verdade que já se penitenciou. No artigo "Errar é comigo mesmo" (26/7/2009), confessou-se: "Na primeira crônica, aqui publicada no dia 2 de janeiro de 2005, afirmei, em alto e bom som, que esqueço tudo o que leio e tendo a inventar de minha cabeça o que os romances não contam e os ensaios não dizem.
Que crédito pode merecer um sujeito tão desligado que chega a mijar na lata de lixo pensando que é o vaso sanitário? Era inevitável acontecer o que tem acontecido: cartas e cartas de leitores apontando os erros que cometo, informações erradas, dados equivocados. São tantos que já nem consigo lembrar, e não os lembraria ainda que fossem poucos, porque lembrar não é o meu forte. (...) E tem sempre aquele leitor chatinho que aproveita para nos dar um puxão de orelha. A minha, aliás, já está ardendo".
Lamento seus problemas neo-urológicos e auriculares. Mas ele esqueceu de dizer que sua cabeça só funciona para engrandecer-se. Lembra que, gênio precoce, foi campeão de bolinha-de-gude. E vive trocando as bolas, sempre em proveito próprio. 
Gullar inventou uma conversa de bar de mais de 50 anos para tentar desmerecer o meu apreço a Oswald de Andrade, os muitos estudos que publiquei e, por tabela, os de Décio Pignatari e Haroldo de Campos contra nenhum trabalho seu, que sobre Oswald tem um poema de circunstância sacado do fundo da gaveta.
O encontro em Spaghettilândia jamais ocorreu. No Rio eu só como espaguete recomendado por amigos.
Conheci-o em 1955 em seu apartamento levado por Oliveira Bastos. Como disse Manuel Bandeira, fui puxá-lo pelos cabelos. 
Neo-Nero, anunciara que não faria mais poemas. Mostrei-lhe os nossos e ele se saiu com um formigueiro trapalhônico... Quando a exposição de Arte Concreta (dezembro de 1956) foi para o Rio (em fevereiro de 1957), ele, que para aqui mandara cinco cartazetes formigulosos, encheu uma sala de formigas (13 cartazes de 1 x 2 m). Numa coletiva de 26 artistas em que a regra era que cada qual exporia até quatro trabalhos! Haja ética! Não adiantou.
O formicida do Tempo engoliu o guloso formigamento. Eu fora ao Rio convidá-lo generosamente para participar da mostra. Vi-o mais quatro ou cinco vezes de passagem. Uma, na casa de Mário Pedrosa: conversei o tempo todo com Mário Faustino, que era culto e civil, o oposto de Gullar, monoglota e ególatra.
Haroldo o viu uma vez, em 1957. Gullar só falava em Murilo Mendes e nos surrealistas. Na fase neostalinista, proclamou que quem estava certo era Mário de Andrade, não Oswald. Esqueceu disso também?
Conheci Oswald em 1949, visitei-o muitas vezes, e estive com Décio e Haroldo entre os poucos que o saudaram como "o mais jovem" no "Telefonema a Oswald" (Jornal de São Paulo, 15/1/1950). Décio nos representou no "banquete antropofágico" em homenagem ao poeta " sexappealgenário" no Automóvel Clube (1950). 
Em 1954, Décio propôs a peça "O Rei da Vela" no seu Teatro de Cartilha. Nos manifestos da poesia concreta, Oswald é destaque. E, no "Diário Popular" (12/12/1956), depusemos Haroldo e eu: "Contra a reação sufocante, lutou quase sozinha a obra de Oswald de Andrade, que sofre, de há muito, um injusto e caviloso processo de olvido sob a pecha de 'clownismo' futurista. Seus poemas ('Poesias Reunidas O. Andrade'), seus romances-invenções 'Serafim Ponte Grande' e 'Memórias Sentimentais de João Miramar' (de tiragens há muito esgotadas, para não falar de seus trabalhos esparsos ou inéditos), que ainda hoje, por sua inexorável ousadia, continuam a apavorar os editores, são uma raridade no desolado panorama artístico brasileiro. A violenta compressão a que Oswald submete o poema, atingindo sínteses diretas, propõe um problema de funcionalidade orgânica que causa espécie em confronto com o vício retórico nacional".
Ninguém precisou de Gullar e sua vã gloríola.
A sua grande contribuição: descobriu em Oswald duas qualidades, humor e frescor. Nenhuma tem Gullar. Guloso e ressentido, diz que a poesia concreta é tolice, mas quer ser seu precursor... O "Lance de Dados", de Mallarmé? "Pensou" em traduzir... Só que foi Haroldo o tradutor.
Sousândrade é chato porque foi descoberto por nós, mas ele já sabia que existia. 
O papo furado sobre Oswald é porque nós o resgatamos. Décio e Haroldo não são poetas -explode. Eu seria, mas fui corrompido pelos meus companheiros. Inglório furor competitivo. Frágil casquinha do trabalho alheio.
Por que não sai da casquinha e entra na Academia Brasileira de Letras onde o espera o confrade Sarney? Afinal, inventou a neomemória e o neoacademismo...


AUGUSTO DE CAMPOS, 80, é poeta, ensaísta e tradutor, autor de "Poesia Antipoesia Antropofagia" (Cortez e Moraes, 1978), "Despoesia" (Perspectiva, 1994), "Não" (Perspectiva, 2003), entre outros.




Literatura 
A propósito do texto "Redescoberta de Oswald de Andrade", de Ferreira Gullar (Ilustrada, 17/7), em que o cronista menciona fictício encontro comigo, que teria ocorrido há mais de meio século, peço vênia para lembrar as palavras do próprio memorialista em crônica anterior, de 26 de junho de 2009, na Ilustrada, sob o título "Errar é comigo mesmo": "Ninguém pode dizer que não avisei.
Na primeira crônica, aqui publicada no dia 2 de janeiro de 2005, afirmei, em alto e bom som, que esqueço tudo o que leio e tendo a inventar de minha cabeça o que os romances não contam e os ensaios não dizem. Que crédito pode merecer um sujeito tão desligado que chega a mijar na lata de lixo pensando que é o vaso sanitário?".
AUGUSTO DE CAMPOS, poeta (São Paulo, SP) 

RESPOSTA DO COLUNISTA FERREIRA GULLAR - Fiquei estarrecido ao ler a mensagem de Augusto de Campos a propósito de uma crônica em que contei um almoço nosso, no Rio, em 1955, quando falamos, entre outras coisas, de Oswald de Andrade. Como sua opinião sobre Oswald era então negativa, ele agora, por não se atrever a negá-la, nega o próprio encontro. Eu teria inventado tudo... Muita gente me conhece e sabe que, distraído eu sou, mas mentiroso, não. Em compensação, para minha surpresa, o Augusto, que sempre tive como um sujeito honesto, ainda que sectário, mente agora, negando um encontro que ele sabe que ocorreu.
Ou será que, como eu, ele deu para esquecer de tudo e também mijar na lata de lixo?



FERREIRA GULLAR 

Redescoberta de Oswald de Andrade 


Além do humor, o que percebi de melhor em Oswald de Andrade foi frescor da linguagem


CREIO QUE foi em 1953 que eu, ao entrar na livraria da editora José Olympio, então na rua do Ouvidor, deparei-me, sobre um balcão, com vários exemplares do livro "Serafim Ponte Grande", de Oswald de Andrade, a preço de liquidação.
Eu, que o conhecia de nome de uns raros poemas, comprei um exemplar e, naquele mesmo dia, o li dando gargalhadas. É certo que sempre tive simpatia pelos irreverentes, talvez porque da irreverência resulte uma ruptura com a mesmice.
Essa releitura foi para mim uma revelação. Oswald ainda estava vivo, mas quase ninguém tomava conhecimento de sua literatura. Agora ele acaba de ser homenageado pela Festa Literária de Paraty.
Naquela semana mesmo, na casa de Mário Pedrosa, falei de Oswald, da boa surpresa que tive ao lê-lo. Mário sorria satisfeito, admirador que era da literatura de Oswald e de seu espírito irreverente.
Contou-me algumas histórias engraçadas que sabia dele. Pegou da estante um exemplar de "Pau Brasil". Era a primeira edição, com a bandeira brasileira desenhada na capa. "Você vai gostar", disse-me ele, ao me entregar o livro. E na verdade o li com prazer e surpresa, encantado com a maneira jovem que ele tinha de dizer as coisas.
Além do humor, o que percebi de melhor em sua literatura foi o frescor da linguagem, diferente da de outros poetas brasileiros modernos, mesmo os que vieram depois dele:
"Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados."
Falei do livro com Oliveira Bastos, então jovem crítico literário, que também decidiu voltar-se para Oswald de Andrade. E se tornou seu amigo. Naquele mesmo ano, estava eu em casa de Amelinha, minha namorada na época, no dia em que completava 23 anos de idade, quando toca a campainha da porta e surge um homem grande, de olhos verdes enormes, em mangas de camisa. Não acreditei no que via: ali estava Oswald de Andrade, que me abraçou e disse que vinha me cumprimentar pelo meu aniversário.
Com ele, rindo de meu espanto, entrou Bastos, que tramara tudo e lhe tinha levado uma cópia de "A Luta Corporal", ainda inédito. Isso ouvi do próprio Oswald, que afirmou, exagerado como era: "Com você, renasce a poesia brasileira".
E, como se não bastasse, acrescentou que ia dar um curso de literatura brasileira na Itália e a última aula seria sobre minha poesia. Melhor presente de aniversário não podia haver. Ele me deu então um livro com suas peças "A Morta" e "O Rei da Vela", editado já havia algum tempo, que guardo comigo até hoje.
O Réveillon daquele ano passamos os três -Bastos, Amelinha e eu- na sua casa em São Paulo, em companhia dele e Maria Antonieta d'Alkmin, sua mulher e musa. Já estava doente e trazia uma pequena medalha de Nossa Senhora, presa à blusa do pijama. Mas ele não é ateu?, perguntei a mim mesmo, achando graça. Em outubro daquele ano, morreria. Escrevi, então, um poema, que terminava assim: "Fez sol o dia todo em Ipanema. / Oswald de Andrade ajudou o crepúsculo, hoje, dia 24 de outubro de 1954".
Naquele ano, eu havia publicado "A Luta Corporal", em cujos poemas finais desintegrava a linguagem, o que chamou a atenção de três jovens poetas paulistas -Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari-, que me procuraram.
Augusto veio encontrar-me, no Rio, quando conversamos sobre as questões que ele levantou acerca da poesia brasileira. Foi num almoço na Spaghettilândia, na Cinelândia.
Falou-me do propósito do grupo deles de renovar a poesia brasileira e foi por essa razão que me procuraram, já que meu livro rompia com "a poesia sentada", na expressão deles. E então citou os poetas brasileiros que, no seu entender, representavam um caminho para a renovação: Mário, Drummond, Cabral. Oswald de Andrade estava fora.
Estranhei e ele então respondeu que não se podia levá-lo a sério, por considerá-lo um irresponsável. Respondi que, irresponsável ou não, sua poesia era inovadora, sua linguagem tinha um gosto de folha verde. Ele ficou de relê-lo e da releitura que fizeram resultou a redescoberta de Oswald de Andrade. Por tudo isso, fiquei feliz ao vê-lo homenageado agora pela Flip 2011.

23 de jul. de 2011

A jogada dos planos de saúde

Paulada no SUS

LIGIA BAHIA e MÁRIO SCHEFFER




Ajudar empresas lucrativas que não cumprem seu papel já é inversão perversa; celebrar contratos para atender aos clientes de planos é iniquidade

É uma bordoada a recente regulamentação da lei paulista que permite a venda para planos de saúde de até 25% da capacidade dos hospitais públicos gerenciados por organizações sociais.
Desde o famigerado Plano de Atendimento à Saúde (PAS), criado por Maluf, uma política de governo não atingia assim, de chofre, o Sistema Único de Saúde (SUS).
Reprise do mesmo drama, abrem-se as torneiras que irrigam empresas privadas com dinheiro público. O PAS ensinou que a gambiarra de governantes, baseada em legislação questionável e financiamento improvisado, não resiste à próxima eleição, mas enriquece alguns à custa do calote no SUS.
Para justificar o ardil, a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo identificou que 18% dos pacientes atendidos em hospitais públicos têm plano privado. Por que até hoje não viabilizou essa cobrança por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar?
A falsa alegação de que a lei federal do ressarcimento não é extensiva às organizações sociais e o suposto efeito Robin Hood (tirar dos planos para melhorar o SUS) escondem interesses cruzados.
Uma mão lava a outra: as organizações sociais precisam de dinheiro novo para manter sua vitrine assistencial, e os planos e seguros de saúde querem ostentar hospitais públicos de alta complexidade em suas redes credenciadas.
Há um negócio bilionário em ascensão, de planos populares a menos de R$ 100 por mês, que só é viável com o uso da capacidade instalada do SUS. Os planos de saúde já vivem de subsídios públicos.
Eles ajudam a eleger políticos, lucram com a renúncia fiscal, com a isenção de impostos e com repasses do erário para convênios médicos do funcionalismo.
Ao mesmo tempo, empurram para as contas do SUS idosos e doentes -que não têm condição de arcar com o aumento das mensalidades decorrentes do passar da idade ou cujo acesso é vetado a tratamentos mais caros.
Uma em cada cinco pessoas com câncer vinculadas a planos de saúde são jogadas ao mar e buscam socorro no SUS.
Ajudar empresas altamente lucrativas que não cumprem seu papel já é uma inversão perversa. Celebrar contratos para o atendimento aos clientes de planos, que pensam ter escapado das alegadas agruras da rede pública, constitui requinte de iniquidade.
A aventura em curso nada tem a ver com o ressarcimento, que prevê critérios de justiça contábil para atendimentos eventuais e limitados. O que está em jogo, já testado em hospitais universitários do Estado, é a expansão da fila dupla, verdadeiro apartheid que dá acesso privilegiado a quem tem plano e reserva a porta dos fundos para a "gente diferenciada" do SUS. Não dá para transigir com essa distorção escandalosa.


LIGIA BAHIA, doutora em saúde pública, é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
MÁRIO SCHEFFER, doutor em ciências, é pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ambos são autores do livro "Planos e Seguros de Saúde: O que Todos Devem Saber sobre a Assistência Médica Suplementar no Brasil" (Editora Unesp).

20 de jul. de 2011

Corrupção: Por que não reagimos?

FERNANDO DE BARROS E SILVA

Por que não reagimos?

SÃO PAULO - Por que os brasileiros não reagem à corrupção? Por que a indignação resulta apenas numa uma carta enviada à Redação ou numa coluna de jornal? Por que ela não se transforma em revolta, não mobiliza as pessoas, não toma as ruas? Por que tudo, no Brasil, termina em Carnaval ou em resmungo?
A pergunta inicial não foi feita por um brasileiro -o que é sintomático. Foi Juan Arias, correspondente do jornal "El País" no Brasil, quem a formulou num artigo recente. "
Es que los brasileños no saben reaccionar frente a la hipocresía y falta de ética de muchos de los que les gobiernan?". Y entonces???
Não existe resposta simples aqui. Em primeiro lugar, a vida de milhões de brasileiros melhorou nos últimos anos, mesmo sob intensa corrupção, e apesar dela. Ninguém que leve o materialismo a sério pode desconsiderar esse dado básico.
Além disso, o PT, na prática, estatizou os movimentos sociais. Da UNE ao MST, passando pelas centrais sindicais, todos recebem dinheiro do governo. Foram aliciados. São entusiastas e sócios do poder, coniventes com os desmandos porque têm interesses a preservar, como o PR de Valdemar e Pagot.
Há ainda um terceiro aspecto, menos óbvio, que leva muita gente progressista a se encolher diante da corrupção. É a ideia introjetada de que qualquer movimento político ou mobilização contra a bandalha acaba sendo uma reedição do espírito udenista, coisa da direita ou que serve a seus propósitos. O lulismo soube explorar esse enredo, como se estivesse em jogo no mensalão uma disputa entre Vargas (o pai dos pobres nacionalista) e Lacerda (o moralista a serviço das elites).
Lula nunca moveu uma palha para mudar o sistema político podre que o beneficiou. Com a corrupção sob seu nariz, preferiu posar de vítima da imprensa golpista. Enquanto isso, seus aliados, no PT ou à direita, golpeavam os cofres da Viúva, exatamente como sempre neste país. Está aí a gangue dos Transportes, na estrada há 10 anos.



Retirado da Folha de S. Paulo de 20/07/2011.

19 de jul. de 2011

A tentação totalitária - LUIZ FELIPE PONDÉ


Primeiro vem a certeza de si mesmo como agente do "bem total", depois você vira autoritário em nome dele


VOCÊ SE considera uma pessoa totalitária? Claro que não, imagino. Você deve ser uma pessoa legal, somos todos.
Às vezes, me emociono e choro diante de minhas boas intenções e me pergunto: como pode existir o mal no mundo? Fossem todos iguais a mim, o mundo seria tão bom... (risadas).
Totalitários são aqueles skinheads que batem em negros, nordestinos e gays.
Mas a verdade é que ser totalitário é mais complexo do que ser uma caricatura ridícula de nazista na periferia de São Paulo.
A essência do totalitarismo não é apenas governos fortes no estilo do fascismo e comunismo clássicos do século 20.
Chama minha atenção um dado essencial do totalitarismo, quase sempre esquecido, e que também era presente nos totalitarismos do século 20.
Você, amante profundo do bem, sabe qual é? Calma, chegaremos lá.
Você se lembra de um filme chamado "Um Homem Bom", com Viggo Mortensen, no qual ele é um cara legal, um professor universitário não simpatizante do nazismo (o filme se passa na Alemanha nazista), e que acaba sendo "usado" pelo partido?
Pois bem. Neste filme, há uma cena maravilhosa, entre outras. Uma cena num parque lindo, verde, cheio de árvores (a propósito, os nazistas eram sabidamente amantes da natureza e dos animais), famílias brincando, casais se amando, cachorros correndo, até parece o Ibirapuera de domingo.
Aliás, este é um dos melhores filmes sobre como o nazismo se implantou em sua casa, às vezes, sem você perceber e, às vezes, até achando legal porque graças a ele (o partido) você arrumaria um melhor emprego e mais estabilidade na vida.
Fosse hoje em dia, quem sabe, um desses consultores por aí diria, "para ter uma melhor qualidade de vida".
E aí, a jovem esposa do professor legal (ele acabara de trocar sua esposa de 40 anos por uma de 25 -é, eu sei, banal como a morte) o puxa pelo braço querendo levá-lo para o comício do partido que ia rolar naquele domingão no parque onde as famílias iam em busca de uma melhor qualidade de vida.
Mas ele não tem nenhuma vontade de ir para o comício porque sente um certo "mal-estar" com aquilo tudo. Mas ela, bonita, gostosa, loira, jovem e apaixonada (não se iluda, um par de pernas e uma boca vermelha são mais fortes do que qualquer "visão política de mundo"), diz: "meu amor, tanta gente junta querendo o bem não pode ser tão mal assim".
É, meu caro amante do bem, esta frase é uma das melhores definições do processo, às vezes invisível, que leva uma pessoa a ser totalitária sem saber: "quero apenas o bem de todos".
Aí está a característica do totalitarismo que sempre nos escapa, porque ficamos presos nas caricaturas dos skinheads: aquelas pessoas, sim, se emocionavam e choravam diante de tanta boa vontade, diante de tanta emoção coletiva e determinação para o bem.
Esquecemos que naqueles comícios, as pessoas estavam ali "para o bem".
Se você tem absoluta certeza que "você é do bem", cuidado, um dia você pode chorar num comício achando que aquilo tudo é lindo e em nome de um futuro melhor.
E se essa certeza vier acompanhada de alguma "verdade cientifica" (como foi comum nos totalitarismos históricos) associada a educadores que querem "fazer seres humanos melhores" (como foi comum nos totalitarismos históricos) e, finalmente, se tiver a ambição política, aí, então, já era.
Toda vez que alguém quiser fazer um ser humano melhor, associando ciência (o ideal da verdade), educação (o ideal de homem) e política (o ideal de mundo), estamos diante da essência do totalitarismo.
O que move uma personalidade totalitária é a certeza de que ela está fazendo o "bem para todos", não é a vontade de destruir grupos diferentes do dela.
Primeiro vem a certeza de si mesmo como agente do "bem total", depois você vira autoritário em nome desse bem total.
O melhor antídoto para a tentação do totalitarismo não é a certeza de um "outro bem", mas a dúvida acerca do que é o bem, aquilo que desde Aristóteles chamamos de prudência, a maior de todas as virtudes políticas.
Não confio em ninguém que queira criar um homem melhor.

Mais crack

Em mais uma ida, desta vez involuntária até a padaria mais próxima, para as ruas acometidas pela presença de usuários de crack notei o de sempre: a Polícia Militar e Guarda Civil tocando as pessoas de um lado para o outro como se fossem galinha no galinheiro ou gado no pasto.
Entretanto, o clima nas ruas Guaianazes, Timbirás, Vitória, Aurora, Praça Júlio Mesquita, pertinho da avenida São João, estava diferente.
Ao invés de estarem abobalhados como de costume, os usuários estavam irritados:
Um deles passou ao meu lado enfiando um punhal brilhante no cinto.
Outro passou correndo falando palavrões.
Mais três passaram tropeçando olhando-me com olhares lúgubres.
Depois de tentar ampliar o caminho de volta como sempre faço, admito que senti certo medo e pânico e voltei para a São João rapidinho deixando para trás aquele ambiente de guerra sem bombas.
Engraçado é que ontem à noite quase me enganavam!
Assisti ao filme The Fighter (O Lutador) onde o Christian Batman Bale fez o papel de um ex-lutador viciado em crack. No filme, o viciado em crack é um tanto inofensivo e até divertido, o mesmo acontecendo com seus amigos viciados.
Vi que era algo totalmente diferente da realidade vivente nas áreas pobres onde o crack domina almas, mentes e corpos e em alguns momentos tornam os usuários de drogas bastante violentos.

16 de jul. de 2011

Craqueiras e craqueiros - Drauzio Varella

Não curto tudo que ele escreve, mas podemos pensar a respeito do que ele diz.
Sou testemunha dos efeitos do crack aqui no centro de SP.


DRAUZIO VARELLA



Não seria mais sensato construir clínicas pelo país com pessoal treinado para lidar com dependentes?


A CONTRAGOSTO, sou daqueles a favor da internação compulsória dos dependentes de crack.
Peço a você, leitor apressado, que me deixe explicar, antes de me xingar de fascista, de me acusar de defensor dos hospícios medievais ou de se referir à minha progenitora sem o devido respeito.
A epidemia de crack partiu dos grandes centros urbanos e chegou às cidades pequenas; difícil encontrar um lugarejo livre dessa praga.
Embora todos concordem que é preciso combatê-la, até aqui fomos incapazes de elaborar uma estratégia nacional destinada a recuperar os usuários para reintegrá-los à sociedade.
De acordo com a legislação atual, o dependente só pode ser internado por iniciativa própria. Tudo bem, parece democrático respeitar a vontade do cidadão que prefere viver na rua do que ser levado para onde não deseja ir. No caso de quem fuma crack, no entanto, o que parece certo talvez não o seja.
No crack, como em outras drogas inaladas, a absorção no interior dos alvéolos pulmonares é muito rápida: do cachimbo ao cérebro a cocaína tragada leva de seis a dez segundos. Essa ação quase instantânea provoca uma onda de prazer avassalador, mas de curta duração, combinação de características que aprisiona o usuário nas garras do traficante.
Como a repetição do uso de qualquer droga psicoativa induz tolerância, o barato se torna cada vez menos intenso e mais fugaz. Paradoxalmente, entretanto, os circuitos cerebrais que nos incitam a buscar as sensações agradáveis que o corpo já experimentou permanecem ativados, instigando o usuário a fumar a pedra seguinte, mesmo que a recompensa seja ínfima; mesmo que desperte a paranoia persecutória de imaginar que os inimigos entrarão por baixo da porta.
A simples visão da droga enlouquece o dependente: o coração dispara, as mãos congelam, os intestinos se contorcem em cólicas e a ansiedade toma o corpo todo; podem surgir náuseas, vômitos e diarreia.
Quebrar essa sequência perversa de eventos neuroquímicos não é tão difícil: basta manter o usuário longe da droga, dos locais em que ele a consumia e do contato com pessoas sob o efeito dela. A cocaína não tem o poder de adição que muitos supõem, não é como o cigarro cuja abstinência leva o fumante ao desespero esteja onde estiver.
Vale a pena chegar perto de uma cracolândia para entender como é primária a ideia de que o craqueiro pode decidir em sã consciência o melhor caminho para a sua vida. Com o crack ao alcance da mão, ele é um farrapo automatizado sem outro desejo senão o de conseguir mais uma pedra.
Veja a hipocrisia: não podemos interná-lo contra a vontade, mas devemos mandá-lo para a cadeia assim que ele roubar o primeiro transeunte.
A facção que domina a maioria dos presídios de São Paulo proíbe o uso de crack: prejudica os negócios. O preso que for surpreendido fumando apanha de pau; aquele que traficar morre. Com leis tão persuasivas, o crack foi banido: craqueiras e craqueiros presos que se curem da dependência por conta própria.
Não seria mais sensato construirmos clínicas pelo país inteiro com pessoal treinado para lidar com dependentes? Não sairia mais em conta do que arcar com os custos materiais e sociais da epidemia?
É claro que não sou ingênuo a ponto de acreditar que, ao sair desses centros de tratamento, o ex-usuário se tornaria cidadão exemplar; a doença é recidivante. Mas pelo menos ele teria uma chance. E se continuasse na cracolândia?
E, se ao receber alta contasse com apoio psicológico e oferta de um trabalho decente, desde que se mantivesse de cara limpa documentada por exames periódicos rigorosos, não aumentaria a probabilidade de permanecer em abstinência?
Países, como a Suíça, que permitiam o uso livre de drogas em espaços públicos, abandonaram a prática ao perceber que a mortalidade aumenta. Nós convivemos com cracolândias a céu aberto sem poder internar seus habitantes para tratá-los, mas exigimos que a polícia os prenda quando nos incomodam. Existe estratégia mais estúpida?
Faço uma pergunta a você, leitor, que discordou de tudo o que acabo de dizer: se fosse seu filho, você o deixaria de cobertorzinho nas costas dormindo na sarjeta?